Paulo Oliveira
Eliane Faria é neta do lendário César Faria e filha do magistral Paulinho da Viola. Seu show, "Foi um rio que passou em minha vida", apresentado no Centro Cultural Solar Botafogo, no dia 22 de abril de 2016, é composto pelas músicas do pai. Liderado por uma sambista de muitos recursos interpretativos e com esse histórico, o show só poderia ser exitoso, como de fato foi. Mas Eliane Faria quis mais. Não dispensou algumas das obras mais conhecidas de Paulinho, entretanto a costura geral é feita de canções nada óbvias. Porém, não se trata de um um show com músicas Lado B e o motivo é simples: não há Lado B na obra de Paulinho da Viola. E é essa uma das forças do show. A outra é escolha de um repertório que pontua a memória afetiva da cantora, que faz pequenas e luminosas intervenções, em tom de conversa íntima com o público. A banda afiada é um espetáculo à parte. O quarteto, formado por Alfredo Machado (violão), Ivan Machado (contra-baixo), Victor Neto (nos sopros e metais) e José Luiz (bateria e percussões) dá a justa medida do tom intimista, que revela uma cantora contida em intrepretações fieis à elegância e sobriedade do mestre. Neste show, menos é mais. Muito mais.
O espectador ganha versões inspiradas de clássicos como "Dança da solidão", "Pecado capital", Timoneiro", além da aplaudida versão para "Onde a dor não tem razão". Além dessas pérolas mais conhecidas, a plateia foi presenteada com a belíssima "14 anos", que a cantora pontua com depoimento delicioso acerca de sua "inaptidão" pelos estudos, digamos, "tradicionais", conforme a letra: "Tinha eu 14 anos de idade/ Quando meu pai me chamou/ Perguntou se eu não queria/ Estudar filosofia/ Medicina ou engenharia/ Tinha eu que ser doutor / Mas a minha aspiração/ Era ter um violão/ Para me tornar sambista/ Ele então me aconselhou/ Sambista não tem valor/ Nesta terra de doutor". Mas o tal sambista sem valor é quem pode brindar o público com melodia e letra do quilate de "Nada de novo": "Papéis sem conta/ Sobre a minha mesa/ O vento espalha as cinzas que deixei/ Em forma de poemas antigos/ Relidos/ Perdido enfim confesso/ Até chorei/ Nada mais importa/ Você passou". Ou ainda, com a poesia de "Minhas madrugadas": "Vou pelas minhas madrugadas a cantar/ Esquecer o que passou/ Trago a face marcada /Cada ruga no meu rosto/ Simboliza um desgosto".
Graças ao chamamento do samba, Eliane ingressou no exército de devotos do ritmo. Portelense, lembra no show a chegada de seu pai na escola de Madureira ("Pagode do Vavá" pontua esse momento) e é com a homenagem a azul e branco que encerra o show, exibindo antes e com orgulho presente da eterna Dona Dodô da Portela. Com a plateia fazendo coro, Eliane canta o samba que dá titulo ao show: "Foi um rio que passou na minha vida", que virou o hino não oficial de sua escola do coração.
Há muito mais a se descobrir neste show, porém, como o segredo é a alma do negócio caberá aos amantes do bom samba encontrar os tesouros neste rio de beleza que é a obra de Paulinho da Viola, valorizada pelas interpretações inspiradas de Eliane Faria, que sabe desenhar no palco as memórias afetivas de sua formação musical, para o deleite dos que apreciamos esse ofício sem valor no mundo de doutor, que pai e filha defendem com dignidade e ardor.