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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

“Dorina & Aldir Blanc: feito uma festa, um ritual ”

Paulo Oliveira

Um show em homenagem a Aldir Blanc, um dos melhores e mais produtivos compositores de nossa MPB, implica riscos. Pode-se incorrer na coletânea, na leitura descosida da obra, de estrutura desconexa, embora brilhante, pela qualidade do repertório. Mas quando o trabalho de Aldir encontra uma intérprete com a sensibilidade de Dorina, tudo se torna aparentemente simples. Mas não é. Dorina sabe que tem em mãos um compositor de obra rigorosamente construída em torno de verdades e escolhas poéticas inconfundíveis. O que faz esse CD imprescindível é esse casamento entre cantora e homenageado. Já na primeira audição de Dorina canta Sambas de Aldir & Ouvir, Ao Vivo já sabemos que o enlace tem as bênçãos dos Orixás. O título é de grande felicidade, achado poético digno dos poemas de Aldir. Nos – infelizmente – pouco mais de 44 minutos da obra, o que ouvimos faz jus à pena do poeta e vai além da merecida homenagem aos 70 anos do mestre.
 
A portelense Dorina e o salgueirense Aldir são pares perfeitos de uma dança que requer entendimento e afinidade. O repertório, como não poderia deixar de ser, é primoroso, e não falamos apenas desse lugar comum, embora verdadeiro, da excelência das canções que Aldir lapida, com parceiros diversos. A sequência apresentada no CD alinhava, faixa a faixa, a poética sinuosa de Blanc. Com treze canções do mestre, Dorina canta/conta uma história de vida poética das mais vigorosas. Em “Navalha” (Bosco/Blanc), os versos de abertura já mostram a que qualidade de poeta Dorina empresta a voz: “Teu sorriso é uma navalha/ Que abre meu coração/ O sangue pelo peito/ É do Cristo da Paixão”. O trabalho de Blanc adentra o universo do sagrado e do profano, ecoa João do Rio, Lima Barreto, Nélson Rodrigues, transita por ruas e becos sórdidos da cidade, povoada por gente cariada e maltratada, por sujeitos oblíquos e trágicos que se esbarram nos “botequins mais vagabundos” (“Pra que pedir perdão”, de Moacyr Luz/Blanc), transmudados em locais de contemplação e reflexão. Nesta canção, frases triviais (“Marquei bobeira...”) abraçam metáforas exuberantes: “Hoje eu vejo as coisas como são/ E estrela é só um incêndio na solidão”. Aldir enxerga no menor, no pequeno, assim como Manuel Bandeira viu no beco, a poesia céu-inferno que dali brota. Dessa categoria de poeta se nutre o trabalho de Dorina.
 
Cada nota emitida pela intérprete carrega uma compreensão de letra e música que nos lança no universo mágico-poético-humano de Aldir. Com seus santos protetores, os bravos guerreiros Paulão 7 Cordas (violão), Ramon Araújo (Violão) e Rodrigo Reis (Percussão), Dorina incorpora a entidade
Aldir e suas falanges e os revela. Resulta uma obra composta de dramas de amor, religiosidade e profano, histórias encenadas em pés-sujos ou protagonizadas por mestres, como Nélson Sargento e Wilson das Neves, heróis de nossa gente calejada, personagens de uma história mal contada, a do povo anônimo, sem voz. Coube a Dorina dar forma musical a esse universo, com brilhantismo de intérprete rara, seja quando relê “O Mestre-Sala dos mares”, “O ronco da cuíca” e “De frente pro crime”, ou nos recorda que o hino da anistia, “O bêbado e o equilibrista” (que completa o quarteto de canções da década de 70) é espantosamente atual. Esses tempos duros podem ser bem sintetizados nesses versos de “O ronco da cuíca”: “A raiva dá pra parar, pra interromper/ A fome não dá pra interromper/ A raiva e a fome é coisa dos home”.
 
E assim descobrimos outro predicado no CD/Show: um viés político. Em tempos de pornografia política explícita, Aldir revelou em entrevista a um jornal carioca que alguns intérpretes se recusaram a gravar “Saindo à francesa”, bela e comovente homenagem a Maurício Tapajós (o “Gordo”), por conta de um palavrão. Porque compreende o que canta e canta o que sente como verdade, Dorina enobrece essa exaltação à amizade, de peito aberto e sem o pretenso purismo dos farsantes. E homenageia novamente um de seus amigos queridos, o saudoso Luiz Carlos da Vila, um dos autores da canção, a quem também prestou bela homenagem. Porque é também uma obra política, o CD se encerra com “O bêbado e o equilibrista”, como dissemos, de assombrosa atualidade. Dorina cumpre seu papel de artista com fé no que sabe fazer de melhor, que é acordar as coisas de seu sono dogmático, tirar as palavras do seu estado de dicionário, como disse o poeta Drummond, dando-lhes sentido em forma de música, canto e interpretação.
 
E assim descobrimos outro predicado no CD/Show: um viés político. Em tempos de pornografia política explícita, Aldir revelou em entrevista a um jornal carioca que alguns intérpretes se recusaram a gravar “Saindo à francesa”, bela e comovente homenagem a Maurício Tapajós (o “Gordo”), por conta de um palavrão. Porque compreende o que canta e canta o que sente como verdade, Dorina enobrece essa exaltação à amizade, de peito aberto e sem o pretenso purismo dos farsantes. E homenageia novamente um de seus amigos queridos, o saudoso Luiz Carlos da Vila, um dos autores da canção, a quem também prestou bela homenagem. Porque é também uma obra política, o CD se encerra com “O bêbado e o equilibrista”, como dissemos, de assombrosa atualidade. Dorina cumpre seu papel de artista com fé no que sabe fazer de melhor, que é acordar as coisas de seu sono dogmático, tirar as palavras do seu estado de dicionário, como disse o poeta Drummond, dando-lhes sentido em forma de música, canto e interpretação.
 
Como disse Aldir Blanc, em época de farsantes é preciso reverenciar artistas autênticos como Dorina, corajosa, abusada, que surge em disco e no palco sem máscaras. Ela é o que é, e o que ela é e nos entrega, com sua arte, nos faz um bem enorme, porque é a sua verdade. Saudações portelenses e portelamorenses. Brava!
 
Avante Portela!!!

Foto: Site oficial da Dorinawww.dorina.com.br

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